Olhos, sonhos e sons (o pesadelo de um homem-máquina)
Publicado em: 21 de Agosto, 2025
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capa.jpgEm pé dentro do ônibus, observo o trajeto pela janela. Minha namorada Linda está ao meu lado vendo seu celular. Posso sentir o calor de seu braço encostado no meu.
O ônibus para e a porta se abre. Um adolescente entra. De suéter amarelo e um afro de cor caramelo, ele se dirige a mim:
— Você venderia suas mãos se alguém fizesse tudo por você? — ele pergunta.
Ao ouvir isso, apenas sorrio. Não sei o que responder quando estranhos falam comigo. Linda continua no celular.
— Se alguém olhasse por você, venderia seus olhos?
Continuo sorrindo. Sem respostas. Me sinto desconfortável.
— Arrancaria seu pau se alguém pudesse foder ela por você? — ele pergunta, apontando para Linda.O ônibus para. Sinto um leve beijo em minha bochecha e vejo que Linda está indo para o lado de trás do ônibus, passando seu bilhete na catraca.
Saio e vou até ela. Ao chegar na catraca, me viro e olho uma última vez para o rapaz.
Em uma rua escura, um único poste velho tenta iluminá-la com sua luz alaranjada.
No fim da rua, alguém vem correndo com o corpo virado de lado e com seus braços apertando seu peito em uma posição quase fetal. Ao se aproximar, ele olha para mim.
medida que se aproxima, seu rosto é revelado pela luz e percebo que ele parece distorcido de tanto gritar. Em sua boca há vômito e seus olhos estão abertos de uma forma humanamente impossível.
— Quarenta e seis. Quatrocentos e cinquenta e seis mil, duzentos e vinte.
— Sete. Quatrocentos e trinta e nove mil, quatrocentos e dezoito.
A mãe espera o filho retornar. Acorde.
— Vida? — Linda me chama, já sentada em um assento recém-liberado para nós dois.
Me viro.
O rapaz sorri para mim.
Passo a catraca e me sento ao lado dela.
— Finalmente chegamos! — Linda diz enquanto se alonga.
A viagem foi longa, mas valeu a pena. O hotel é simples, porém aconchegante. Não podíamos gastar muito após aquela cirurgia.
— Dói? — Linda pergunta enquanto aponta para minha nuca.
“Nem um pouco”, respondo.
“São 15h44, aliás”, digo, provando mais uma vez o quão útil o chip é.
— Ah, é? Qual é então... as coordenadas do deserto do Saara? — ela pergunta, me desafiando.
“Que pergunta besta, querida”, respondo.
“31,4988889, 34,4088889.”
— Ah, sim, com certeza...
Ambos rimos.
Enquanto dormíamos no quarto escuro, repentinamente escuto alguém dizer “deserto” e, então, o quarto se enche de uma areia laranja que surge do ar, cobrindo tudo ao redor e levantando uma grande poeira que me impede de respirar.
Acorde.
Enquanto andamos pela rua, decido olhar no aplicativo de mapa do meu celular. Ao ligá-lo, vejo que meu papel de parede parece diferente. Foi muito rápido, mas tenho certeza de que vi algo que não deveria estar ali: uma mulher grávida decapitada com sua barriga cortada ao meio.
Que tipo de mente doentia é essa que tenho? A dúvida me aflige, foi algo muito rápido e logo meu celular estava com seu papel de parede normal: eu e Linda, juntos.
Mas, eu não reconheço o lugar em que estamos nessa foto...
De volta ao hotel, Linda parece estar passando mal. Ela se senta no sofá e me ajoelho no chão, de frente para ela. Começamos a ler juntos as possíveis condições dados os sintomas em um aplicativo. À medida que eu descia a tela, as descrições se tornavam cada vez mais insanas e sem nexo. De possíveis doenças, o texto começa a se transformar em nomes longos e bizarros. As descrições que antes relatavam formas de tratamento começaram a se tornar apenas relatos de violência extrema, junto com imagens que eram geradas para acompanhá-las. Assustado, viro o celular para mostrar para Linda, porém, quando ela olha para a tela, seu rosto fica subitamente pálido e seus olhos se abrem de uma forma bizarra.
Nunca a vi assim antes...
Arrepiado, tiro o celular do rosto dela e vejo que a última foto gerada era a de um jovem com o rosto deformado por conta de um impacto poderoso em seu rosto, provavelmente de um soco.
Ele se parecia comigo.
Peço desculpas a ela por ter mostrado isso. Ela odeia violência.
Desesperadamente, tento fechar o aplicativo. Irei desinstalá-lo agora.
Entretanto, Linda continua com aquele rosto esquisito encarando algo que não está ali. Aqueles olhos esbugalhados... isso me perturba por algum motivo.
— Amor? — pergunto, agoniado.
Ela agora se vira para mim. Sinto que seus olhos irão saltar de suas órbitas a qualquer momento. Ela continua me encarando.
Os olhos dela parecem aumentar. Isso me incomoda demais.
— Pare de me olhar assim! — grito, enquanto a sacudo.
De repente, seu rosto começa a sangrar e ela grita em puro terror, como se estivesse sentindo uma dor angustiante. O sangue saí por todos os buracos em sua cabeça.
Não consigo evitar de me afastar imediatamente. Estou assustado.
Olho para ela de novo. Ela está me encarando com o mesmo olhar assustado e com aqueles olhos vazios e escuros. Nada realmente aconteceu...
Me levanto e me viro para ela. Seus olhos me acompanham.
Aperto seu pequeno pescoço com minhas mãos.
— Eu sei quem você é! Pare de se parecer com minha namorada! — grito.
Seu rosto pálido agora se torna uma massa de carne lisa, como se fosse feito com massinha de modelar. De seu centro, um orifício começa a se abrir e entranhas começam a sair. O buraco tenta me engolir.
A pessoa coisa na minha frente agora começa a assumir formas bizarras. Uma após a outra, consumindo toda minha visão.
Num instante, vejo minha namorada novamente, chorando:
— Achei que seria melhor para você...
Tive um sonho estranho hoje. Sonhei que eu descia uma rua coberta por neblina sob um céu nublado. Não havia carros nas ruas. As pessoas andavam e até corriam nela, porém, elas não conseguiam sair do lugar. Algumas riam enquanto outras choravam.
Conforme eu descia a rua e me aproximava dessas pessoas, elas passavam a se tornar rabiscos feitos em tinta negra e suas cabeças começavam a seguir meus movimentos. Seus rostos se cobriam pela tinta negra e enormes sorrisos surgiam. Como anjos chorões, eles me seguiam e me observavam.
(olhos bem abertos).
Enfim, me deito em minha cama e tento dormir. Meu coração está inquieto. Escuto o som de alguém dormindo, mas não há ninguém aqui. Talvez seja um pássaro lá fora.
Minha ansiedade me faz olhar para a porta aberta do quarto sem parar.
Imagino que algo irá entrar.
O sono não consigo alcançar.
Minha cabeça não para de falar.
Um medo e precipitação quase infantil é o que sinto, mas eu sei que há alguém lá fora, mas não há nada que eu possa fazer.
Escuto gemidos no corredor.
Só me resta sonhar aqui, dentro do pesadelo.
Uma pena que meus olhos já não possam fechar.
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